quarta-feira, 15 de maio de 2013

sombras confortáveis

capítulo I

lá fora chovia torrencialmente. o som da chuva aumentava gradualmente e tornava-se quase incómodo. liguei a televisão e levantei-me da cama. corri as cortinas para ver a chuva a cair, sempre me senti bem ao fazê-lo. sossegava-me. relaxava-me. da televisão ecoavam sons familiares de um qualquer canal de música. desliguei-a imediatamente. naquele momento nada queria sentir, especialmente o que certas músicas me fazem sentir. apenas queria ouvir o som da chuva. apenas isso. encaminhei-me para a casa de banho, apanhando pelo caminho duas almofadas, que voltei a colocar em cima da cama, e um par de meias que preguiçosamente deixei ficar pelo tapete. no espelho da minúscula casa de banho encontrei um rosto desiludido e enrugado, para o qual não olhei mais do que cinco segundos. lavei a cara, como que a querer transfigurar-me e purificar-me, como se a água fosse capaz de me arrancar do rosto os traços de uma vergonha galopante. passei várias vezes a água pela cara. cada vez com mais intensidade. a força com que as minhas mãos batiam na minha face provocava-me uma sensação de castigo corporal auto-infligido, que, no meu subconsciente, sabia que merecia. não sequei a cara, a água escorreu-me pelo peito, eliminando dele pequenas partículas de um perfume tentador que me ficou entranhado na pele e com o qual não estava a conseguir lidar da melhor forma. o cheiro que, na noite passada, tanto me inebriou e seduziu, agora provocava-me náuseas e eu queria ver-me livre dele o mais rapidamente possível. olhei, impotente, para o espelho outra vez. foi a isto que me reduzi? um patético homem de 45 anos, numa minúscula casa de banho, a travar uma luta interior por causa de um perfume? um acumular de frustrações sucessivas tinha-me colocado ali, naquele dia, às onze horas da manhã, naquela pensão rasca, num chuvoso e frio dia de novembro. voltei para o quarto. ela ainda dormia, toda nua e destapada, apesar do frio. ao olhar para ela, senti apenas desprezo. por ela e por mim. o quarto tresandava ao perfume dela. abri a janela, devagarinho, porque não a queria acordar. estabelecer um diálogo com ela seria tão confortável como abraçar uma dúzia de facas afiadas. continuava a chover torrencialmente. e eu sempre gostei de andar à chuva. naquele preciso momento, era o que eu mais queria na vida. vesti-me rapidamente, com uma emergente vontade de sair dali. a consulta à minha carteira apenas confirmou as minhas piores expectativas: não tinha dinheiro para pagar o quarto, porque já tinha pago à prostituta. como é que eu iria resolver o assunto? não podia sair pela recepção, porque me obrigariam a pagar. podia sempre tentar reaver o dinheiro, mas tinha receio de ser apanhado. olhei para a janela, que ainda estava aberta, e observei quais eram as minhas hipóteses de fuga. estava num 1º andar e, à primeira vista, não me pareceu muito difícil saltar para a varanda da casa em frente, para depois descer umas escadas metálicas até à rua, por onde não passava ninguém há largos minutos. benditas as vielas da baixa de coimbra, em que as casas estão praticamente umas em cima das outras. quando me preparava para saltar ouço: "mas para onde é que você pensa que vai?". o seu sotaque brasileiro ainda ecoava na minha cabeça quando me atirei ao encontro das grades, falhando a aterragem na varanda. os meus 45 anos e a falta de qualquer actividade desportiva nos últimos 10 anos ficaram bem reflectidos na minha perna esquerda aquando da queda. mesmo assim, consegui deslizar até às escadas metálicas e colocar-me em fuga, debaixo de um chinfrim abrasileirado e de uma panóplia de insultos e ameaças. felizmente o carro não estava muito longe e pude, assim, escapar-me, guardando para mais tarde o meu passeio à chuva. o meu domingo estava agora a começar. olhei para o espelho e vi uma pessoa diferente, vi uma pessoa capaz de alterar o seu próprio rumo e destino. teriam sido estes os impulsos que faltavam? a aventura? o medo? o risco? de qualquer forma, e tirando as dores na perna esquerda, cada vez mais lancinantes, instalou-se pela primeira vez, em muitos anos, um rasgado sorriso na minha cara e estava a ser deveras gratificante poder ver isso reflectido no espelho.

capítulo II

o meu nome é jorge oliveira, sou divorciado, tenho um filho, o marco, que vejo aos fins-de-semana de quinze em quinze dias, e sou delegado de informação médica. não que tenha grande apetência para o cargo profissional que ocupo, mas foi o que pude arranjar depois de quase três anos de desemprego. é claro que tinha outras ambições para a minha vida, nunca pensei chegar assim tão derrotado a esta idade, mas a minha vida caiu a pique depois da morte do meu pai, há quatro anos. depois seguiu-se a separação da minha mulher, o desemprego e uma cada vez menor resistência a todo um vasto leque de vícios e companhias obscuras. a perda do meu pai foi muito dolorosa, perdi o meu rochedo, o meu apoio. era sempre com ele que ia ter quando os problemas atacavam. a prestação da casa, os seguros, as avarias do carro... ele arranjava sempre soluções para tudo. habituei-me tanto a que fosse ele a resolver todas as coisas chatas que me apareciam que acabei por me desleixar, por nunca me ter verdadeiramente interessado por elas, pela forma como se resolviam. quando o perdi, senti-me sozinho, desamparado. não estava ainda preparado para o perder, não me tinha ainda ensinado tudo. naquela noite fria de janeiro, quando o telefone tocou às três da manhã, senti imediatamente que tinhas partido. que outra má notícia poderia ser? a minha mulher estava ao meu lado, o meu filho dormia no seu quarto, a mãe já tinha partido há anos... só podias ser tu pai! caminhei para o telefone como um condenado a caminho da execução. o choro compulsivo do meu irmão foi a confirmação final. metade do que tinha sido até aí partiu com ele. infelizmente, a melhor parte.
o meu pai vivia com o joão, em tomar, desde que a nossa mãe morreu. vinha passar apenas um mês connosco. a minha cunhada, a matilde, trabalhava em casa, como ama, e podia dedicar-lhe mais tempo do que nós. eu, na altura, era funcionário público, nas finanças, e a sónia, minha mulher, já era advogada, com escritório próprio. como invejei nos anos seguintes o joão e a matilde, por terem podido estar mais tempo com o meu pai do que eu, ouvir os seus conselhos, ir ao futebol, jogar às cartas. nos meses seguintes à sua morte, a tensão em minha casa já era muito grande. a sónia sentia que eu a culpava por não termos passado mais tempo com o meu pai. o trabalho era tudo para ela, queria construir uma carreira, estabelecer-se como advogada de topo na cidade. quando lhe ventilei a hipótese de o meu pai ficar em nossa casa mais tempo do que o tradicional mês de julho, quando o joão e a matilde iam de férias, a sónia logo disse que era incomportável com o ritmo das nossas vidas, ela sem horário para chegar a casa e eu com horários rígidos e inflexíveis. fez-me ver igualmente que o meu pai não iria ser feliz na cidade, com a confusão do trânsito, o barulho, as multidões. eu, obviamente, concordei, porque a sónia tinha razão. mas depois de ele morrer, culpei-a inconscientemente pelo facto de não ter passado mais tempo com o meu pai. e o casamento começou a ir pelo cano abaixo...

capítulo III

foram penosos os primeiros meses. recusava-me a sair de uma confortável, mas compreendida, depressão. ela serviu-me de camuflagem para muitas coisas que eu não queria fazer. as tais coisas que antigamente pedia ao meu pai para resolver. de certa forma, estava a negar-me a aceitar as responsabilidades inerentes ao meu papel de chefe de família, pai de um filho menor, agora que acima de mim não tinha mais ninguém. desamparado de mãe e pai, os holofotes apontavam agora para mim. era eu que tinha, agora, de resolver os problemas dos outros. mas como, se eu nem os meus conseguia resolver? nunca soube.
o ambiente degradava-se de dia para dia em minha casa. era raro o dia em que não havia discussões. as contas avolumavam-se, muito por causa de ter ficado três meses de baixa psicológica, as notas do marco pioraram, a sónia acudia a vários fogos mas era incapaz de lidar com tudo isto. ainda por cima era a única que trabalhava por esta altura. eu vegetava por casa, comendo tostas mistas ao almoço, jogando playstation e vendo má televisão. não abria a porta a ninguém, não atendia o telefone nem o telemóvel. estive completamente isolado do mundo durante três meses. a minha única tarefa diária era ir buscar o marco ao liceu, às 17h30. numa dessas situações, enquanto esperava no carro pelo meu filho, fui interpelado por uma muher, que aparentava ter trinta e poucos anos de idade, de calças de ganga justas e top preto. tinha longos cabelos pretos e uns olhos esverdeados. obviamente, quando a vi aproximar-se do meu carro, tentei recompor-me o melhor possível. a minha grande dúvida, no momento, foi se mantinha ou não os óculos de sol. não queria que ela visse as minhas olheiras mas, por outro lado, sempre considerei uma grande falta de educação falar com alguém que não tira os óculos escuros para falar comigo. por isso tirei-os. no preciso momento em que ela ia começar a falar. não pude deixar de notar um ligeiro esgar de desconforto e alguma repugnância perante o que se lhe apresentava diante dos olhos.
- boa tarde, o senhor é o pai do marco, não é?
- sou sim - afirmei, tentando dizer o menor número de palavras possível, não fosse ela reparar, igualmente, no meu terrível mau hálito. onde é que há um cigarro quando um tipo precisa de um?
- eu sou a professora de história do seu filho. chamo-me sofia ribeiro. soube pelos colegas do marco que o avô tinha morrido. os meus sentimentos.
- obrigado.
- ele foi-se um pouco abaixo, como deve saber. pelo que os outros professores dele me contam, também aconteceu o mesmo nas outras disciplinas. por isso, estou um pouco preocupada com ele, que sempre foi um aluno exemplar. na altura do falecimento ele não teve nenhum acompanhamento psicológico?
- não, não teve. sofreu muito, é verdade. ele gostava muito do avô artur.
- já andava há uns tempos para falar consigo ou com a sua mulher, porque eu considero que ele devia ser acompanhado psicologicamente. é uma pena ele desperdiçar a inteligência que tem desta forma. vem aí o terceiro período e ele precisa de subir as notas para não perder o ano.
- sim, tem que ser. tem que ser. - confesso que não me lembrava de nada minimamente inteligente para dizer. já não me lembrava da última vez que tinha falado com alguém. talvez tenha sido no funeral.
- eu vou deixar-lhe um cartão da escola, com o número do gabinete de acompanhamento psicológico, para a eventualidade de o senhor e a sua esposa decidirem aceitar esta minha proposta.
- sim, muito obrigado. logo ao jantar discutirei o assunto com a minha mulher.
ela sorriu e despediu-se, afastando-se do meu carro devagarinho. pelo menos era assim que eu a via, numa espécie de câmara lenta, com os cabelos selvagens a debater-se com o vento numa luta inglória. sofia ribeiro! lindo nome! no meu tempo não havia professoras assim. ou que se vestissem assim. raio de sorte!
durante o jantar, toquei no assunto. o marco sentiu-se incomodado, logo dizendo que não precisava de acompanhamento nenhum. a sónia, de forma ríspida e autoritária, fez-lhe ver que o seu rendimento escolar tinha que ser alterado rapidamente, ameaçando proibir as suas saídas ao sábado à noite. o marco olhou para mim, à espera de defesa. vi nos olhos dele que aquela não era a altura propícia para o desapontar, que me estava a estender uma mão à espera do salvamento de uma queda inevitável. era este o momento.
- marco, a mãe está a brincar. não vai nada proibir-te de sair aos sábados. apenas tens que perceber que tens que te aplicar e estudar mais. nunca nos deste problemas na escola. não vai ser este ano, pois não?
o marco esboçou um enorme sorriso, aliviado, contente pelo meu voto de confiança.
- marco, vai para o teu quarto, por favor, que eu quero falar com o teu pai. - disse a sónia.
de repente, senti colocarem-me no pescoço umas grossas cordas, às quais deram um daqueles nós que só se aprendem nos escuteiros. o pontapé na cadeira que me deixaria suspenso no ar abandonado à minha sorte foi dado pela sónia ainda antes de o marco ter chegado ao quarto:
- esta foi a última vez que me desautorizaste à frente do nosso filho. estou farta! chega, acabou! passo o dia inteiro a trabalhar, para poder pagar as nossas contas, para pôr comida na mesa, gasolina nos carros, e é esta a recompensa que eu tenho? tu ficas em casa o dia todo, sabe-se lá a fazer o quê, não te preocupas com nada nem com ninguém, não queres saber onde eu estou, onde está o teu filho, o que come, com quem anda, e depois és tu, ainda por cima, que dás a palavra final sobre o que é melhor para ele? isso não, nem pensar. eu, que faço uma ginástica terrível para arranjar tempo para tudo, trabalho, casa, escola do marco, compras... a única coisa que te peço é que o vás buscar à escola todos os dias. achas muito? depois quando acontecem situações como esta, é o paizinho que é bestial, porque faz as vontades todas ao filhinho. eu não, eu sou sempre a má da fita. para mim, acabou! estou esgotada! farta disto tudo!
como poderia eu rebater isto? era tudo verdade. tudo! apenas um grande canalha tentaria argumentar algo em sua defesa, utilizando as artimanhas possíveis e imaginárias para reverter a situação a seu favor. a verdade tinha-me batido de frente, como um autocarro a chocar contra uma bicicleta. o meu papel era o de ficar estendido no chão, com as rodas tortas, os pedais partidos e o volante desfeito.

capítulo IV

encarei o fim do meu casamento de 16 anos com a sónia de uma forma natural. há muito que procurávamos caminhos opostos e tínhamos ambições distintas. apenas nos limitávamos a partilhar a mesma casa nos últimos tempos, incapazes sequer de um beijo na face quando ela saía de casa ou chegava do emprego. enquanto fazia as minhas malas, tentei lembrar-me da última vez que tínhamos feito amor. a única data que me veio à cabeça foi a do dia de aniversário do marco, em outubro, há muitos meses atrás. depois da festa lá em casa, ele saiu com os amigos e eu e a sónia ficamos sozinhos em casa. eu estava bem disposto, bem bebido; ela não sabia por onde começar a arrumar a mesa e a sala, que estava de pantanas devido à "passagem" de um grupo de dezena e meia de adolescentes famintos, todos eles munidos do inseparável telemóvel. aliás, até creio que eles comunicaram uns com os outros por esse meio, tal a avidez com que manuseavam o aparelho. quando se partiu o bolo, depois dos parabéns, estava mesmo à espera que o marco mandasse sms's aos amigos a perguntar se queriam bolo. enfim... juventude! no meu tempo havia o cubo mágico, o walkman, os headphones. mudam-se os tempos, mudam-se as distrações juvenis. mas, apesar de tudo, acho que nunca andei vestido com umas calças pelas virilhas e com as cuecas a verem-se. nessa noite, quem estava impecavelmente vestida era a sónia. de vestido preto, pelos joelhos, e com um acentuado decote, por onde espreitavam parte dos seus vistosos seios. nessa noite desejei-a com intensidade e não descansei enquanto não a possuí. fizemos amor na cozinha, em pé. lembro-me que, durante o acto, me veio à cabeça a cena do filme "basic instinct", em que o michael douglas e a jeanne tripplehorn se envolvem da mesma forma. no filme, eles acabam nas costas de um sofá. na minha cozinha, acabamos na mesa. mas quer-me parecer que nós prolongamos mais a "cena" do que o par cinematográfico (também não era difícil, no filme a cena demora uns 40 segundos). foi bom, foi mesmo muito bom. por isso é que custa tanto a perceber por que motivo não o fazíamos mais vezes. creio que esse orgasmo na cozinha foi mesmo a última coisa que fizemos juntos.
a questão da custódia do marco era um assunto praticamente resolvido à partida. como iria discutir isso com uma mãe advogada? concordamos que seria melhor ele ficar. o acordo com a sónia foi colocarmos o apartamento à venda e depois dividirmos o dinheiro. assim como eu ficar com o marco aos fins de semana, de quinze em quinze dias. por isso, quando saí de casa, num quente dia de março, fiquei com a sensação de que estava a partir para umas férias sozinho, na medida em que sabia perfeitamente que ainda ia ver a sónia muito mais vezes. o marco deu-me um forte abraço e, quando encostou a cabeça no meu ombro, disse-me algo baixinho que eu nunca mais esqueci: "eu vou estudar mais, prometo".
quando entrei no táxi, comecei a chorar desalmadamente. lembro-me que, na rádio, passava o "purple rain", do prince. e como eu desejava que estivesse a chover, que as nuvens cobrissem o céu e tapassem o sol. esse sol que me feria, que contrastava seriamente com as trevas no meu interior, com os negros abismos da minha alma. sim, a verdade é que eu era, naquele momento, um homem livre, com carta branca para começar de novo, para um "reset" a todos os níveis; mas a minha sombra no pavimento continuava a ser a de um frágil miúdo assustado.

capítulo V

passaram-se três meses depois da minha saída de casa. continuava em lisboa mas a minha vontade era sair dali. estava a viver em casa do andré, meu colega da repartição. solteiro, 34 anos, o andré era um "bon vivant", uma pessoa que apreciava e perseguia os prazeres da vida, sem dar "cavaco" a ninguém. no trabalho era educado, calmo e ponderado; fora desse ambiente soltava-se completamente e procurava sempre divertir-se ao máximo. não se tratava de um caso de dupla personalidade, mas sim de uma pessoa que sabia perfeitamente separar a vida profissional da vida particular. a minha chegada a casa dele, naquela que seria inicialmente uma breve fase de transição, não alterou em nada o seu modo de viver. apesar de ter um vasto grupo de amigos, passou a ter em mim um parceiro para as saídas nocturnas, para os copos, para as farras e, sobretudo, um "designated driver". o álcool nunca me fascinou muito. via-o sempre como um meio de transporte de um ponto a), um estado normal e racional, para um ponto b), um estado anormal e irracional. nas primeiras saídas nocturnas nunca me conseguia entrosar nos ambientes, em qualquer um deles. e o andré bem tentou diversificar os mesmos. casinos, discotecas, casas particulares, festas na praia, etc.. em todos me sentia deslocado. obviamente, como não apologista das bebidas alcoólicas, o meu estado de espírito ao longo dessas noites era sempre igual. assistia à lenta metamorfose do andré, bebida a bebida, até conseguir chegar ao "ponto g", como ele referia. nessa altura, parava de beber e, simplesmente, deixava o corpo seguir o seu destino. perdi a conta aos "engates" que ele desperdiçou por minha causa. não lhe era muito difícil virar a cabeça a uma mulher. era alto, bem constituído, moreno, cabelo curto e fazia sempre questão de se vestir bem, não descurando pormenor nenhum no seu aspecto. por vezes conseguia ver o "telejornal" inteiro enquanto esperava que ele se arranjasse. quando vinha ter comigo com duas mulheres eu sabia perfeitamente qual era a ideia. invariavelmente, aquela que me estava destinada era sempre substancialmente menos atraente do que a dele. meia dúzia de palavras depois, às vezes nem tanto, vinha o habitual "torcer de nariz", seguido de um ligeiro sussurro ao ouvido da amiga e a consequente explicação para um afastamento. eu não me importava. era evidente que a minha personalidade não se encaixava ali, nem eu tinha alguma predisposição para a moldar àqueles ambientes. limitava-me a observar, noite após noite, a estudar os movimentos, os "joguinhos" de sedução, os truques. nesse aspecto, aprendi muito com o andré, ele sentia-se sempre como peixe na água, seduzia as empregadas com o seu estilo extrovertido e brincalhão. até as piadas menos trabalhadas e nitidamente saloias, quando estava menos inspirado, recebiam rasgados sorrisos, seguidos da famosa passagem das mãos pelos cabelos e leve inclinar da cabeça. para alguém como eu, que sempre tive uma vida pacata e familiar, sem devaneios nocturnos durante largos anos, todo aquele cenário pertencia a um outro mundo alternativo. era tudo novo para mim. lentamente fui aprendendo a "jogar". até me tornar muito bom também...

capítulo VI

o verão aproximava-se. os dias quentes tinham-se instalado, esticando o dia, aumentando a vontade de sair à rua, de apreciar uma esplanada, com uma gelada cerveja na mão, chinelos nos pés, calções e t'shirt. estar em casa ou no trabalho era uma camisa de forças. o mundo parecia sorrir lá fora, com a habitual agitação urbana transformada em melodias harmoniosas, em ambientes coloridos pelo sol durante o dia, que embelezava mesmo os mais lúgubres recantos de lisboa, e iluminados pela lua de noite, fazendo pulsar as suas artérias mais solitárias. mal acabávamos de jantar, geralmente algo que coubesse no microondas e estivesse ao alcance no congelador, eu e o andré escapávamos para a rua. eu sentia-me um adolescente, a viver as mesmas sensações do meu filho quando o deixávamos sair à noite com os amigos. a convivência diária com o andré tinha alterado muito do meu comportamento social. era inevitável. ele era um especialista na matéria. em termos de bares, cafés, restaurantes e tascas, era muito raro o sítio onde ele não conhecesse alguém. em parte, começava finalmente a sentir-me novamente amparado, a caminhar com o profundo conhecimento de que haveria sempre duas sombras na minha silhueta, fazendo com que os meus níveis de auto-estima começassem a subir. comecei então a sentir que não poderia defraudar a pessoa que me colocou naquele estado, que me tinha aberto todos aqueles horizontes. a forma que eu arranjei de o fazer foi "embarcar" nas suas aventuras, não recusando nada pelo caminho. tinha 40 anos e sentia que ainda não tinha vivido a vida em toda a sua plenitude e, olhando para a vida do andré, era impossível não deixar de sentir alguma inveja. aquilo que no princípio renunciava, quando fui morar com ele, "batia" forte agora como uma premente necessidade.
o meu primeiro grande teste foi numa festa particular em casa de um casal amigo do andré, a paula e o césar cardoso, ele industrial automóvel e ela decoradora de interiores, ambos na casa dos cinquenta anos. a casa era enorme, com vastos relvados, jardins e piscina. mal olhei para ela comecei imediatamente a sentir-me mal vestido. fomos recebidos pelos donos da casa, que cumprimentamos com requintada cortesia, porque o ambiente exigia algum decoro e um comportamento imaculado. rapidamente deixou de se ver o bem tratado relvado da casa, à medida que os restantes convidados iam chegando. césar cardoso sabia receber, agia como um profissional nas suas deambulações pelos vários nichos de gente, cumprimentando, trocando meia dúzia de palavras simpáticas e perguntando sempre se era preciso alguma coisa. facilmente se compreendia nas suas acções o sucesso da sua carreira profissional. a sua esposa era mais comedida, chegando a dar alguns ares de arrogância. foi sempre muito fácil localizá-la durante a noite, constantemente acompanhada por duas amigas numa mesa à beira da piscina.
a noite avançava, assim como o número de copos vazios. a música ia ficando cada vez mais alta nos meus ouvidos. o champanhe escorria desalmadamente pela minha garganta, fazendo aumentar consideravelmente a qualidade da banda. senti então uma vontade incrível de dançar. a banda convidava. parecia mal não aceitar. o andré ainda não tinha tentado o seu habitual truque "eu tenho duas, ficas tu com uma; a mais feia de preferência". desta vez até queria que o fizesse, mas nem sequer o estava a ver. enquanto o procurava, vi o anfitrião encaminhar-se para a garagem com um grupo de pessoas. talvez para mostrar algum carro, porque um bom profissional nunca descansa. o andré já me tinha avisado que ele era assim, viciado no trabalho. por isso tinha tudo aquilo que eu estava a ver, incluindo a paula, sua mulher. ela lá continuava à beira da piscina. aproximei-me lentamente. se eu queria mudar mesmo, teria que começar pelos testes mais difíceis. afinal tinha estado grande parte da noite a olhar para ela. por isso sabia sempre onde ela estava. e o reflexo da água da piscina iluminada na sua cara atribuía-lhe um ar angelical, com olhos meigos e solitários. interrompi educadamente a conversa e convidei-a para dançar. as amigas olharam-me de alto a baixo, com um evidente ar de espanto e indignação. a paula gentilmente recusou o meu pedido, não conseguindo, todavia, deixar transparecer alguma satisfação pelo convite. não querendo parecer mal educado, convidei igualmente as suas amigas de mesa, recebendo a mesma resposta. procurando a melhor saída possível para o meu evidente embaraço, perguntei onde eram as casas de banho. foi a única pergunta que me ocorreu, talvez motivada pelo constante empertigamento da minha bexiga. depois das indicações, afastei-me, roubando mais um copo de champanhe de uma bandeja qualquer. já dentro de casa, errei a porta da casa de banho e dou de caras com o andré, num quarto, aos beijos com uma loura qualquer. nem me viram. fechei a porta devagarinho e, ao virar-me, dou de caras com a paula. tirou-me o copo da mão e disse que me ia indicar onde era a casa de banho. bebeu um pouco de champanhe e seguiu à minha frente, bem devagarinho, soltando os cabelos. o seu corpo ainda virava a cabeça a muitos homens, isso era óbvio. quando vi que tínhamos realmente entrado na casa de banho, não deixei de sentir algum desapontamento, com receio que as suas intenções fossem apenas as de me indicar, mesmo, a casa de banho. mas não eram. fechou a porta à chave, levantou a saia e tirou meticulosamente as suas cuecas. no meu interior, o medo de ser apanhado com a mulher do dono de casa e a excitação de fazer amor depois de tanto tempo travavam uma intensa luta. a fogosidade da paula, a porta trancada, o efeito do champanhe e a minha erecção fizeram a balança pender nitidamente para a excitação. fizemos amor em pé, contra a parede, tentando fazer o menor barulho possível. a intensidade foi tanto maior em virtude do perigo que corríamos de ser apanhados. uniu-nos uma enorme cumplicidade, aliada a uma tremenda sede de afectos e a uma evidente atracção física. no final, depois de nos recompormos, ela saiu primeiro, não sem antes me ter dito que teríamos que repetir um dia.
quando voltei a encontrar o andré, ele estava com duas mulheres... tarde demais.

capítulo VII

a vida parecia querer começar finalmente a sorrir-me. experimentava sensações novas, redescobria as tremideiras que eu julgava que tinham ficado na adolescência, o bater acelerado do coração, os suores frios, a efervescência da sedução, o prazer de conquistar. a paula teve esse condão de ignição, de me despertar para um recomeço de vida aos quarenta. os cabelos brancos deixaram de ser sinónimo de velhice para passarem a ser sinónimos de charme, de "know how", de experiência e sabedoria. nas saídas seguintes com o andré, depois da festa em casa da paula, cheguei até a ficar assustado com a facilidade com que tudo se desenrolava. era tudo excessivamente fácil, especialmente com o andré. resumia-se a umas bebidas, uns olhares furtivos, dois dedos de conversa e a habitual pergunta "não querem ir para um sítio mais calmo?". como sempre, eu conduzia o carro. o andré nem esperava e abria sempre as "hostilidades" no banco de trás. normalmente, voltávamos para o nosso apartamento, onde cada um de nós se enfiava no seu quarto com a respectiva companhia. uma vez estávamos tão embriagados que só de manhã reparámos que tínhamos trocado as nossas parceiras.
nessas noites, era frequente encontrarmo-nos na cozinha às tantas da manhã, cheios de fome, aproveitando a ocasião para comentar a "performance" das nossas parceiras. uma vez, o andré foi tão eloquente àcerca das qualidades de uma espanhola, de vinte e poucos anos, que eu sugeri uma troca a meio da noite. e ele estava coberto de razão...
foram meses loucos esses, de bebida, sexo e alguma droga. era inevitável não "chocar" com ela. um charro primeiro, depois ecstasy, o que interessava era manter o barco à superfície, a navegar sem obstáculos. e quanto mais entrava neste estilo de vida, mais queria experimentar. o contraste com a minha vida profissional era gritante. sentia a pachorrenta e formal repartição de finanças cada vez mais como uma enorme e apertada camisa de forças. as horas diárias que lá passava eram asfixiantes, "chupavam-me" toda a energia e a vida que a noite me dava. como a tal camisa me apertava cada vez mais, comecei a levar às escondidas uma garrafa de vodka, daquelas que os detectives aconchegavam no bolso das gabardines nos filmes antigos, que escondia na minha secretária. aligeirava, e de que maneira, aquela tortura toda, sem que ninguém desconfiasse. apenas o andré sabia, porque também bebia. graças a deus que a vodka não deixa hálito nenhum. saíamos sempre do trabalho com a nítida sensação que o dia estava apenas nesse momento a começar. bons e despreocupados tempos esses...
para elevar ainda mais os meus índices de felicidade, a sónia deu-me uma excelente novidade quando fui buscar o marco num dos sábados. o apartamento tinha sido finalmente vendido. disse-me para passar no escritório dela na segunda-feira seguinte para tratarmos da papelada. depois de pago o empréstimo ao banco, ainda deu para "encaixar" 25 mil euros. eu fiquei com 10 e ela com 15, por causa do marco. achei justo.
o rapaz sempre fez um esforço e passou de ano. organizei uma grande festa para ele e para os amigos lá em casa. notei que ele me olhava de forma diferente, com algum orgulho até. apresentou-me os amigos todos e, na altura do brinde, agradeceu-me bastante pela confiança que depositei nele aquando da sua "quebra psicológica". foi muito gratificante ter ficado com a sensação que não o tinha perdido, apesar da nossa distância e dos poucos momentos que passava com ele. afinal, não tinha feito tudo mal na minha vida. o marco era a prova disso.
num dos sábados seguintes, fomos ao colombo ao cinema, um programa habitual. íamos sempre à sessão das 15h00, depois de almoçarmos por lá. depois de almoço, estávamos nós na fnac a "queimar tempo", quando vi, na secção dos livros, uma cara conhecida. já estava a "engatilhar" uma abordagem quando o marco se antecipou a cumprimentá-la. aproximei-me dos dois, à espera de uma óbvia apresentação. e ela não tardou. era a sofia ribeiro, professora de história do marco. eu sabia que a conhecia de algum lado... dois beijinhos na face, perfume inebriante, pele imaculada, cabelos rebeldes a escorrerem-lhe pelo pescoço... confesso que fiquei um pouco nervoso. a minha postura foi a mesma do jorge oliveira antigo, não a do novo. as palavras não saíam como eu queria que elas saíssem, a eloquência parecia ter adormecido, o charme engasgou-se com o meu espontâneo regresso à timidez. felizmente, ela estava muito mais à vontade e, basicamente, falou pelos dois. o marco afastou-se para a secção dos cds e eu fiquei a falar com a sofia, que não se cansava de elogiar a sensacional recuperação do meu filho, sobretudo depois de mais uma contrariedade na sua vida, o divórcio dos pais. eu, nos pequenos lapsos de tempo em que não estava totalmente perdido nos seus olhos castanhos, fui capaz de balbuciar alguns sons de concordância. no sentido de "quebrar o gelo", especialmente o meu, que poderia ser facilmente confundido com o icebergue onde bateu o titanic, resolvi perguntar-lhe se já tinha tomado café. ela depois disse algo que eu nunca mais me esqueci, algo que resumia perfeitamente o género de mulher que era, com sentido de humor, cultura geral e simpatia q.b.: - "sim, já tomei café várias vezes. sei perfeitamente o que é". foi o perfeito "desbloqueador". eu soltei uma gargalhada, ela abriu um sorriso resplandecente, quase que de alívio pela minha reacção. ficou ali estabelecido o nosso primeiro sinal de cumplicidade.

capítulo VIII

a sofia parecia estar muito mais descontraída do que eu. sentou-se, pousou a carteira e os livros que tinha comprado numa cadeira e cruzou as pernas, entrelaçando as mãos por cima do seu joelho direito. transpirava descontracção, agindo sempre com uma desarmante naturalidade, como se este género de situações lhe acontecessem todos os sábados à tarde. "tomar um café com um pai de um aluno meu? vamos lá embora!".
- sempre quis ser professora? - perguntei.
- sim, sempre fui muito determinada nesse aspecto. os meus pais diziam que eu só podia mesmo ser professora, porque, nas minhas brincadeiras, imitava sempre os meus professores, as atitudes, a postura rígida e responsável, os raspanetes. até os meus pais eram meus alunos...
- nesse caso, foi para a universidade com o estágio já feito...
- mas mesmo assim ainda tive que lá andar quatro anos até me darem o diploma... foi uma injustiça.
- e escolheu história por vocação ou porque estava decidida a quebrar aquela ideia generalizada de que esse curso é um dos que tem menos saída profissional? quer dizer, ainda ontem um licenciado em história me pesou um quilo de uvas...
- eu sabia disso, como é óbvio, mas a história sempre me fascinou. quantas vezes arranjei problemas lá em casa porque eu queria ver os programas do josé hermano saraiva e os meus irmãos e o meu pai queriam ver futebol. naquela altura ainda não havia quatro televisores por casa, como agora.
- quem ganhava mais vezes?
- eles, porque eram mais. ficaram aliviados quando vim estudar para lisboa.
- e veio de onde mesmo?
- de uma aldeia chamada sarzedo, do concelho de arganil. lembro-me bem dos magníficos verões que lá passei, no rio alva.
- lisboa deve ter sido um choque muito grande...
- sim, nos primeiros meses andei à deriva. perdia os autocarros todos, enganava-me nas paragens, nunca conseguia decorar os horários do metro. enfim, o "pacote" todo, típico de alguém que nunca viveu numa grande cidade. mas também, se não fôssemos nós, os da província, vocês lisboetas não teriam ninguém com quem gozar, não é?
- eu não sou lisboeta. estou apenas à espera de juntar dinheiro suficiente para me pirar. aqui, nunca me senti verdadeiramente em casa.
quando a sofia se preparava para falar, provavelmente para me perguntar de onde é que eu vinha, fomos interrompidos pelo marco, que me veio pedir dinheiro para comprar um cd. enquanto eu procurava na carteira a quantia solicitada, a sofia começou a conversar com o marco, num tom mais sério, fazendo valer o seu estatuto de professora, sobretudo porque existiam fortes possibilidades de ela voltar a ser a sua professora de história no 11º ano. quando lhe dei o dinheiro, o marco disse-me para não me esquecer que o filme que íamos ver começava dentro de dez minutos, ao que eu lhe respondi "mas vamos ver um filme? qual filme". a sofia riu-se, por achar que eu estava a brincar com o marco. mas não estava. naquela altura sentia-me alheado de tudo, de tão inebriado que estava, por me sentir bem, finalmente, a fazer parte de uma conversa e por sentir que poderia ficar ali quinze meses seguidos apenas a falar com a sofia. foi como se toda aquela rotina do sábado à tarde com o marco, tão rigorosamente cronometrada e previamente estabelecida, se tivesse evaporado, de repente, da minha cabeça. e foi uma sorte o marco ter-me pedido apenas dinheiro para comprar um cd, porque se ele me tivesse pedido a chave do carro eu era bem capaz de lha dar.
o marco despediu-se da sofia com um "até p'ró ano stôra. boas férias!". ela respondeu "igualmente. fica descansado que eu aviso o teu pai quando chegar a hora do filme". esbocei um sorriso de cumplicidade, mas por dentro dava pulos de alegria. esta frase dela "caiu-me" maravilhosamente bem. encaixou. foi a perfeita conclusão para aquele pequeno interlúdio com o marco. foi o assumir de que também ela queria mais tempo comigo, caso contrário, teria olhado para o relógio, dizia que já estava atrasada para qualquer coisa e "entregava-me de bandeja" ao meu filho.
o tema da conversa passou a ser o marco, as suas virtudes, potencialidades e, sobretudo, a coragem que demonstrou perante as adversidades com que foi defrontado: a morte do avô e o divórcio dos pais. apesar da natural quebra a meio do ano, ele conseguiu dar a volta por cima e acabar o ano com notas razoáveis.
- fiquei realmente impressionada com a maturidade que o marco revelou no último período. confesso que não estava à espera que ele voltasse tão rapidamente ao seu nível.
- tenho a impressão de que ele se sentiu culpado, de certa forma, pela separação dos pais. eu e a minha ex-mulher entramos em discussão por causa dele, porque ela queria proibi-lo de sair com os amigos e eu defendi-o, dizendo que tinha confiança nele. como foi a última discussão, a que precipitou o fim, acredito que ele se tenha sentido assim. aliás, quando saí de casa, ele prometeu-me que ia estudar mais. cumpriu, como se pôde verificar.
- digamos que, em parte, o vosso divórcio acabou por lhe fazer bem...
- ele cresceu muito neste último ano em termos psicológicos e emocionais. gostava muito do avô artur, de ir com ele à pesca e ao futebol, de o ajudar no quintal. as férias em tomar eram indispensáveis para ele. e depois, de repente, ficar sem essa parte importante da sua vida, foi um choque demasiadamente brutal. comparado com isto, a separação dos pais foi quase como uma ida ao dentista.
- e como é que ele tem reagido?
- muito bem. ficou com a mãe, como era evidente. eu estou com ele aos sábados, de quinze em quinze dias. mas não moramos muitos longe um do outro. a sónia também facilita bastante, caso eu queira sair com ele noutros dias. o nosso casamento até acabou muito bem. digamos que foi por mútuo acordo. se calhar, até somos mais amigos agora do que quando éramos casados...
- bem, sempre é verdade então que depois da tempestade vem mesmo a bonança!...
- boa série essa. era com o lorne greene e o michael landon.
- sim, o "anjo na terra".
- exactamente. andei anos a ansiar por uma série chamada "tempestade" e que a colocassem antes do "bonanza". seria giro ouvir a fátima medina ou a helena ramos anunciar a programação.
- seria bem interessante, sem dúvida. lamento dizer que está na hora do vosso filme. já passaram dez minutos.
- mas ainda nem tomamos café... - referi, bastante espantado.
- também é verdade que nos esquecemos de o pedir - disse a sofia, sorrindo.
o marco aproximava-se lá ao fundo. eu sentia o nó a apertar na garganta, ao pressentir uma eminente e incontornável despedida. e vinham lá as férias de verão. quando é que eu a tornaria a ver? levantamo-nos. ajudei-a com o saco dos livros. lancei um último olhar à mesa, para ver se nos tínhamos esquecido de alguma coisa, e virei-me para ela. contra a minha vontade, o tempo não parou. os ponteiros continuavam a marchar imperturbáveis. o marco continuava a caminhar na nossa direcção. ficámos uns bons dez segundos assim, a olhar um para o outro, sem dizer nada. até que, no café, alguém deixou cair um copo ao chão, desviando-nos o olhar.
- bem, tenho que ir andando. vocês têm o filme para ver.
- sim, é verdade. é pena. gostaria de ficar mais tempo a falar consigo - até hoje me custa a crer que disse estas palavras, que tive coragem para tanto.
- talvez um dia a gente possa, efectivamente, tomar um café juntos. hoje perdemos essa oportunidade.
o marco chegou ao pé de nós e disse "vamos pai, já estamos atrasados". a sofia entendeu que era a "deixa" dela e começou a afastar-se, sorrindo e dizendo adeus com a mão direita. o marco começou também a afastar-se, mas em direcção oposta. eu permanecia estático, sem reacção, a ver a sofia cada vez mais longe, impotente para travar a sua marcha e incapaz de proferir fosse o que fosse, tal era a minha frustração. "pai, anda!". "sim, sim, já vou".
escusado será dizer que o filme me passou completamente ao lado. aliás, nem me lembro que raio de filme é que fomos ver nessa tarde de sábado. mesmo que fosse a melhor obra cinematográfica de todos os tempos, a minha indiferença nesse dia estaria sempre garantida. não conseguia deixar de pensar que poderia estar ainda a falar com ela. e, pior ainda, não parava de me recriminar por não lhe ter pedido um contacto que fosse.

capítulo IX

os dias seguintes foram de tédio absoluto. o andré tinha ido de férias, com uma namorada recente, a verónica, para itália. eu tinha a casa só para mim e tempo para construir um navio, mas não me apetecia fazer nada. só tinha a sofia na cabeça, um pensamento tão vívido e tão forte que até me tolhia os movimentos. os dias de trabalho, a quinze dias de ir de férias, sucediam-se, sem nenhuma ponta de interesse. dias houve em que "despachei" a garrafa de vodka toda e, mesmo assim, as coisas não melhoraram. faltava-me lá o andré para a "galhofa", para nos rirmos de toda e qualquer situação, mesmo as mais normais possíveis. os meus outros colegas da repartição eram chatos como tudo, tinham uma cultura geral abaixo de cão, limitando-se a repetir durante todo o santo dia as anedotas que tinham ouvido na noite anterior nos "malucos do riso" ou nos "batanetes". eu devia olhar para o relógio umas duzentas vezes por dia, tal era a vontade de sair dali. atender as pessoas ainda era o mais insuportável, digamos que era bem o exemplo de um funcionário do estado: mal encarado, antipático e pouco prestável. ficava as tardes todas a pensar no que haveria de fazer quando saísse daquela "prisão" e, quando finalmente saía, metia-me em casa, sem coragem nem iniciativa para fazer fosse o que fosse. limitava-me a ficar no sofá, com o comando da televisão na mão, a mudar de canal. no dia seguinte, mais uma gigantesca dose de neura no trabalho. sempre, mas sempre, com a sofia na cabeça. angustiava-me a incerteza de um novo encontro, a minha cobardia e impotência para lhe pedir um número, uma morada, o que quer que fosse que a mantivesse ligada a mim. estávamos em agosto, ela estava certamente de férias, sabe-se lá onde. e eu aqui, "amordaçado", em lisboa, que parecia vazia, sem alma e também ela de férias.
os dias foram passando, sempre da mesma forma, até eu sentir uma enorme necessidade de falar com alguém, de algum calor humano, compaixão, ternura... ir a uma festa ou sair sem o andré era mentira, ainda não me sentia preparado para enfrentar uma multidão sozinho. mas dei o primeiro passo, que era vital, para estancar aquela monotonia: meti-me no carro, depois de jantar, e vagueei sem destino. para mim já era uma grande passo, aventurar-me sozinho na noite, sem "muletas", sem paternalismos de qualquer espécie. acabei por ir ao colombo tomar café, fazendo questão de escolher a mesma mesa onde estive com a sofia. desta vez tomei mesmo o café, seguindo depois para uma inconsequente excursão pelas montras. sentia-me tão sozinho, tão desamparado, que cheguei a pensar em ligar à sónia, que ainda estava por lisboa. mas o marco não iria compreender. depois pensei na paula, a fogosa mulher do césar cardoso, tal era o desespero. saí do colombo e passei por casa dela, de carro. não sei o que é que eu pensava encontrar indo lá. a paula à porta de casa, em lingerie, a fazer-me sinal com o dedo para eu entrar? um sinal gigante em neón a dizer "o meu marido saiu em negócios, só volta para a semana"? não sei o que me motivou a ir ali, à procura de algo que a paula, manifestamente, não me poderia voltar a dar. já tinha sido um grande risco da outra vez, ainda acabaria por lhe estragar a vida. por isso afastei-me do local, em direcção... ao vazio. ainda não me tinha sentido assim tão sozinho desde o meu divórcio. sentia-me mal e angustiado mas recusava-me a assumir a derrota daquela noite. continuei a conduzir, pela noite dentro.
estava uma noite quente, quase sem vento, e eu tinha os vidros abertos. parei num sinal vermelho e, do meu lado direito, vi três prostitutas, o que até era normal ver quando saía com o andré. de roupas minúsculas, maquilhagem a mais e... ao alcance de qualquer pessoa. uma delas disse bem alto "30 euros, uma hora". a minha primeira reacção foi de profunda censura e até de algum nojo. sempre tinha reprovado o conceito de alguém "alugar" o corpo por alguns minutos a troco de dinheiro. quando o sinal verde abriu, suspirei de alívio. mas, à medida que o tempo ia passando, e a frase "30 euros, uma hora" não deixava de ecoar na minha cabeça, começou a instalar-se uma forte curiosidade e uma vontade de experimentar algo que nunca tinha vivido. sim, tinha noção de que era o "último recurso", mas se houve noite, em toda a minha existência, em que eu não queria regressar sozinho para casa foi aquela. voltei a passar por lá e encostei. lentamente, uma delas foi-se aproximando do carro. era feia como tudo e, sinceramente, creio ter visto um proeminente buço nos cantos da sua boca quando proferia, vezes sem conta, o "famoso" chavão "30 euros, uma hora". como não estava minimamente preparado para tanta falta de beleza, disse à prostituta que não estava interessado e pedi-lhe para chamar uma outra sua colega de profissão. ela reagiu mal e, no mais estridente sotaque brasileiro, lá foi perguntando se aquilo era algum "rodízio de putas". depois de me mandar para a "puta qui ti pariu" e de se afastar, aproximou-se uma das outras duas. sotaque ucraniano, ou de algum país de leste, sem buço, olhos azuis e cabelos louros, curtos. chamava-se natasha e praticava os mesmos preços da sua colega do rodízio. disse-lhe para entrar no carro, ao que ela prontamente acedeu. pelo caminho, fiz-lhe perguntas sobre as "condições" do nosso pequeno contrato, nomeadamente se a poderia levar para casa. ela, em mau português, disse que podia ser onde eu quisesse, desde que lhe pagasse o táxi para regressar. já era tarde quando entrei em casa com a natasha. creio que nenhum vizinho nos viu a entrar; se vissem facilmente chegariam à conclusão de que ela era uma prostituta, tal a forma como estava vestida. mal chegamos ao quarto, ela começou imediatamente a despir-se, o que demorou uns meros trinta segundos, dada a quantidade, ou a falta dela, de roupa que tinha vestida. perguntou-me onde era a casa de banho e se eu me queria lavar primeiro. eu concordava com tudo naquela altura, sentia-me bem por estar com alguém, mesmo que esse alguém fosse uma pessoa que não percebia quase nada do que eu dizia. quando regressamos ao quarto, ela pediu-me o dinheiro e disse que eu tinha uma hora. de repente, sentia-me uma criança a quem os pais deram 500 escudos para andar nos carrinhos de choque na feira popular. paguei à natasha, ela arrumou o dinheiro na carteira e deitou-se na cama.
uma hora depois, chamei-lhe um táxi por telefone. a minha solitária saída nocturna tinha acabado por me custar algum dinheiro, mas, no final, ficou um certo sabor a vitória, mesmo que tenha sido alcançada com um "golo irregular". o mais importante foi não ter ficado sozinho, mesmo que tenha pago pela companhia. a natasha tinha acabado de me "desvirginar".

capítulo X

"se algum dia te apetecer fugir, foge comigo!". escrevi isto num papel um dia, num café qualquer, enquanto esperava pela bica. guardei-o religiosamente na carteira, com o intuito de o poder oferecer à sofia. não sei de que forma ou quando, ou mesmo se algum dia teria coragem para o fazer, mas o simples facto de ter escrito aquelas palavras aliava-me a dor de não a ver. tinha passado um mês desde a última vez que a vi e a incerteza de um novo encontro dilacerava-me. nos momentos de solidão, como aqueles que esgotava no café ao fim de almoço, antes de voltar ao purgatório do emprego, fazia um exame a mim mesmo, a tudo o que se estava a passar na minha vida. o último ano tinha sido terrível: a morte do meu pai, o divórcio, o afastamento do marco da minha vida, o mau ambiente cada vez mais intolerável no emprego, o nascimento de uma vida nocturna questionável e de uma vertente boémia que pouco tinha a ver com o jorge oliveira que o meu pai conheceu em vida. a solidão corroía-me interiormente, obrigando-me a procurar companhia, mesmo que fosse nas ruas e a pagar. obviamente não me sentia bem com aquela situação mas já era mais forte do que eu. passei a compreender melhor os toxicodependentes, os viciados no jogo e no álcool ao entrar no mesmo mundo, ao percorrer os mesmos caminhos. nesses exames de consciência via perfeitamente a face recriminatória do meu pai e sentia-me envergonhado daquilo em que me tinha tornado, no rumo que a minha vida estava a tomar. sentia-me um adolescente, a dividir a casa com um colega de curso e a aproveitar as noites para a diversão, sem prestar contas a ninguém. mas mesmo que me sentisse mal com tudo aquilo, nunca tinha força à noite para combater este vício. durante as férias do andré, devo ter trazido para casa umas dez prostitutas. na noite anterior à chegada do andré fui ainda mais longe, disse à natasha para trazer uma amiga também. com o regresso do andré, eu sabia que teria finalmente um motivo forte para deixar aquele estilo de vida, por isso aquele ménage a trois foi uma espécie de despedida e, ao mesmo tempo, a realização de um fétiche sexual antigo. há muitos anos, ainda antes do nascimento do marco, eu e a sónia tinhamos uma amiga, bem sensual e insinuante, que um dia nos confessou, numa noite de copos, que gostaria de experimentar essa fantasia connosco. durante uns bons tempos, a ideia não me saiu da cabeça, mas nunca comentei esse assunto com a sónia, com receio de represálias, porque a leitura que ela faria seria bastante simples: eu queria fazer amor com outra mulher. apenas isso.
mas aquela que seria uma noite idealizada no paraíso acabou por se tornar um pesadelo, que meteu desacatos no prédio, barulho a altas horas da madrugada, vizinhos a bater à porta e a chamar a polícia. tudo porque o sergei, o "chulo" ucraniano da natasha, teve um ataque de ciúmes quando soube que ela tinha um cliente e não descansou enquanto não arrancou a minha morada a uma das outras prostitutas. quando lá chegou fez um escarcéu de todo o tamanho, batendo à porta, chamando por ela aos berros. como seria natural, os meus vizinhos acordaram para virem ver o que se passava. quando abri a porta ao sergei, ele entrou pela casa dentro e trouxe a natasha pelo braço, deixando ficar a sandy. perante o meu ar de perplexidade, o sergei e a natasha pararam à porta do meu apartamento e começaram a beijar-se, abraçando-se de seguida. antes de saírem do prédio, ainda com alguns vizinhos a vociferarem, a natasha explicou-me que eles tinham tido uma discussão no dia anterior, porque ela tinha acabado de descobrir que estava grávida dele, mas o sergei queria que ela abortasse, contra a vontade dela, para poder continuar a trabalhar. mas, nessa noite, o instinto protector e o receio de a perder falou mais alto e o sergei foi a correr dizer-lhe que queria criar aquele filho com ela. desejei-lhes felicidades e despedi-me deles, tentando posteriormente explicar a alguns vizinhos que se tratavam de uns amigos meus. quando a polícia chegou já estava o prédio em sossego. o pior foi no dia seguinte, quando o andré regressou. tomando conhecimento da história da noite anterior, bem como do constante "tráfego" nocturno no seu apartamento nas últimas duas semanas, o andré confrontou-me directamente. obviamente, contei-lhe a verdade. a tensão era grande naquela altura e eu, embora mais velho do que ele dez anos, sentia-me um rapazito prestes a levar um valente sermão do pai. depois de me explicar que se sentia humilhado com tudo aquilo e que nunca mais iria conseguir andar de cabeça levantada no prédio, por estarem a associar o nome dele a prostituição e proxenetismo, o andré disse-me que tinha uma semana para sair lá de casa. embora considerando que a sua decisão tinha sido demasiadamente ríspida, compreendi a sua posição e acatei a "ordem de despejo".
no dia seguinte, no café, enquanto folheava jornais à procura de apartamentos para alugar, senti-me verdadeiramente sozinho, abandonado à minha sorte. tinha perdido um amigo, decepcionado mais uma pessoa e não tinha uma única voz disponível para me reconfortar. quando abri a carteira, à procura de moedas para pagar o café, vi o bilhete que tinha guardado para entregar à sofia. naquela altura, quem queria fugir era eu. fugir de mim...

capítulo XI

com o andré de regresso ao trabalho na repartição, e tendo em conta o nosso corte de relações, as minhas férias não poderiam ter surgido na melhor altura. duas semanas que eu aproveitei para tentar encontrar um apartamento, não para ir para a praia com o marco ou visitar o meu irmão em tomar. a minha ideia era encontrar um t1 com uma renda similar, ou mais baixa, do que a que pagava ao andré, porque o panorama financeiro começava a ficar negro. comecei por comprar vários jornais com classificados, mas fosse pelo preço ou pela localização, nada me entusiasmava. comecei então a circular pelas zonas que me interessavam, as que ficassem perto do emprego, à procura de placas a dizer "aluga-se", anotando números de telemóvel e mesmo visitando alguns apartamentos. mas nada me agradava. alguns tinham um cheiro nauseabundo, outros precisavam de obras de restauro de fundo para que fosse possível lá habitar um ser humano, outros ainda eram alugados por gente que não me inspirava a menor confiança. e assim se perderam vários dias, com o prazo que o andré me deu para sair do apartamento dele quase a expirar. em último caso, sabia que poderia passar uns dias numa pensão ou residência. o ambiente nos derradeiros dias em casa do andré foi muito tenso. nunca havia diálogo nos poucos momentos em que partilhávamos o mesmo espaço. foi por um vendedor imobiliário que fiquei a saber que o andré ia vender aquele apartamento. foi lá a casa, quando o andré estava a trabalhar, para colocar aquelas famosas placas de imobiliária na varanda. obviamente, e aproveitando um muito desconfortável silêncio, aproveitei para lhe perguntar por apartamentos para alugar. o vendedor, nélson ferreira, muito prestável, sugeriu que o acompanhasse à imobiliária para melhor consultar a oferta existente. com o dia inteiro à minha frente, sem compromisso nenhum agendado, como um verdadeiro dia de férias devia ser, resolvi aceitar o convite e a boleia do vendedor. vinte minutos de condução tresloucada depois, consegui suspirar, finalmente, de alívio, no preciso momento em que o homem puxou o travão de mão depois de estacionar. quando entramos na imobiliária, extremamente bem decorada e com um visual moderno, o nélson viu que tinha clientes à sua espera para ir mostrar um apartamento em carnaxide e "transferiu-me" para outro vendedor. no caso, uma vendedora. quando entramos no gabinete dela, senti imediatamente que a conhecia de algum lado. a confirmação surgiu com as apresentações. "jorge oliveira, esta é a cláudia rebelo". de repente, parece que recuei vinte anos no tempo. à minha frente estava aquela que foi a minha primeira grande paixão, por quem eu chorei "baba e ranho" quando ela decidiu romper os laços sentimentais que tinhamos criado em dois anos de namoro porque queria "ver o mundo". ao fim de dois anos comigo sentiu-se "presa e sufocada", foi a justificação que me deu. parte do meu coração, aquela parte que tem a capacidade de amar loucamente apenas uma vez na vida, escureceu naquele dia e nunca mais viu a cor do sol. a cláudia não me reconheceu, no que constituiu mais uma facada simbólica nas minhas costas, limitando-se a tratar-me cordialmente como a um qualquer anónimo cliente. teria eu mudado assim tanto visualmente nos últimos 20 anos, ao ponto de ela não me reconhecer? apesar de algo incomodado, consegui manter com ela uma conversa normal, tendo-me ela apontado várias hipóteses de aluguer nas áreas pretendidas. depois de lhe explicar a situação em que me encontrava, com necessidade de me mudar o mais rapidamente possível, a cláudia prontificou-se a ir comigo ver alguns apartamentos disponíveis. mal entramos no carro, e depois de eu rezar mentalmente a todos os santos para que ela conduzisse melhor que o nélson, ela olhou-me directamente nos olhos e disse:
- jorge oliveira, meu deus, há quanto tempo não te via?!...
- caramba, estava a ver que não me tinhas reconhecido.
- claro que reconheci. mal tu entraste no gabinete. mas no escritório não quis arriscar uma conversa de índole pessoal. lá dentro há muitos olhos e ouvidos, sempre à espreita de uma oportunidade para nos lixarem.
- eu compreendo, mas deixaste-me em completa agonia e angústia durante quinze minutos. sei que não nos víamos há já vinte anos mas, mesmo assim, o facto de não me reconheceres menosprezava ainda mais o que vivemos na altura.
- calma jorge, foi apenas uma questão de ética profissional. já tomaste café? vamos sentar-nos, tomar um cafezinho e colocar a conversa em dia. pode ser?
- claro que pode. quantos dias disponíveis tens? sempre são vinte anos...
para minha sorte e alívio, a cláudia conduzia suavemente e sem pressas. senti-me muito relaxado e confortável, muito ajudando o cd da sade que ela tinha colocado antes de iniciarmos a pequena viagem até a um café das docas. pelo caminho não me saía da cabeça a expressão "win some, lose some", porque o timing da reentrada da cláudia na minha vida não poderia ter sido melhor, agora que saía dela o andré.
na esplanada do café, vazia àquela hora do dia, onze da manhã, pudemos conversar e escalpelizar os diferentes rumos de vida que escolhemos. ela ainda era solteira, nem nunca esteve sequer perto de casar, embora coleccionasse relacionamentos amorosos. era extremamente fácil imaginar que não faltavam homens na vida da cláudia, ela continuava a exibir uma irresistível sensualidade aos 39 anos, bem expressa nos seus longos cabelos pretos, lábios carnudos, decote proeminente e nas fabulosas pernas que a saia ligeiramente acima dos joelhos deixava descobrir. eu, de simples t'shirt dos rolling stones, calças de ganga e sapatos de vela, sentia-me totalmente deslocado daquele "quadro". o mesmo deve ter pensado o empregado de mesa, que não se coibiu de "admirar" a cláudia como se ela não estivesse acompanhada. quando a longa passagem pelos últimos vinte anos desembocou na actualidade, a cláudia foi directa ao assunto que ambos estávamos a tentar evitar desde o início:
- então, ainda achas que nós teríamos tido futuro juntos?
- acho, eu entendo que foste tu que tiveste medo de ser feliz comigo.
- não digas isso. as coisas resultaram naqueles dois anos porque apenas estávamos juntos uns momentos, não mais do que isso. éramos apenas namorados. quando estivéssemos sempre juntos, de manhã à noite, ficaríamos sem assunto, entediados. e eu tive medo que isso acontecesse connosco, porque não sei se sobreviveríamos a isso, a essa pressão. preferi, dessa forma, partir e ficar apenas com o melhor de ti, com as boas recordações.
- mas porque é que nunca tentámos dar esse passo? até poderia ter resultado...
- porque, com o tempo, fui aprendendo a dar valor à minha liberdade, ao meu espaço, sem ninguém a controlar o que faço com o meu tempo, a perguntar-me o que estou a pensar, a "escravizar-me" emocionalmente. como te disse na altura, no final sentia-me sufocada por ti. tu querias constantes declarações e provas de amor, parecia que tinha que te provar todos os dias que te amava e, mesmo que o conseguisse, tudo voltava ao início no dia seguinte. com tudo isto, senti que a nossa relação só poderia piorar se tentássemos algo mais sério.
- no entanto, não posso deixar de sentir uma certa amargura por nunca me teres considerado sequer para outro tipo de papel na tua vida. nem de amigo. desapareceste completamente. fiquei completamente destroçado emocionalmente.
- mas acredita que foi melhor assim. nós acabaríamos por nos transformar na kathleen turner e no michael douglas do filme "a guerra das rosas". se nos reencontrássemos vinte anos depois, como está a acontecer agora, virávamos a cara um ao outro. assim, ficou uma bonita história de amor, que acabou antes de chegar ao intolerável.
- de certa forma, e vais-me desculpar a frontalidade, até fico contente por nunca te teres casado. acho que ficaria de rastos se soubesse que tinhas encontrado alguém com os argumentos que eu não tive para te levar a assumir esse passo.
- mas tu encontraste. casaste poucos anos depois.
- cláudia, eu já tinha encontrado essa pessoa. eras tu. a sónia fazia parte do nosso grupo de amigos e apoiou-me bastante quando tudo terminou entre nós, mas o nosso casamento baseou-se nos pressupostos errados, como se veio a comprovar. no final já só havia respeito e consideração um pelo outro, nada de paixão ou mesmo amor. daí que me sinta fortemente tentado a dar-te toda a razão do mundo. compreendo agora que a nossa relação talvez não pudesse ter ido mais longe. as primeiras paixões são sempre as mais complicadas. ama-se louca e entusiasmadamente e sentimo-nos eufóricos e apaixonados, mas, por outro lado, não há ainda qualquer experiência anterior onde se vá beber conhecimento para evitar os erros que se cometem naturalmente. é nas primeiras paixões que se cometem os maiores erros. ciúmes, possessão, egoísmo exacerbado. começo a pensar que te deveria ter conhecido uns 10 anos mais tarde, quando estivesse realmente preparado para uma relação.
- o teu problema foi quereres tudo rapidamente. ainda eu não me sentia verdadeiramente a tua namorada, já estavas tu a pensar em casamento, no passo seguinte. tu não chegavas a viver na total plenitude o momento em que estavas, porque estavas sempre a pensar no próximo. deste-me excelentes momentos, que eu vou recordar para sempre, mas sentia que te esforçavas demais para me agradar e eu queria que tudo acontecesse de forma natural, com mais espontaneidade e menos trabalho de preparação nos bastidores. e, como cereja em cima do bolo, eras ciumento como tudo.
- acho que naquela altura queríamos coisas diferentes. eu queria a vida familiar, a casinha nos arredores, os filhos, o carro familiar; tu querias liberdade para ver o mundo, sem amarras emocionais, sem impedimentos de qualquer ordem. basicamente, ainda não estávamos preparados um para o outro.
- também. nós desenhávamos futuros diferentes. juntos, acabaríamos por atrapalhar o desenho um do outro e, provavelmente, acabaríamos por apagá-lo.
- e eu nunca tive grande jeito para desenhar...
- bem, jorge, vamos lá então arranjar-te um apartamento...

(continua)